
Era domingo, 11 de dezembro, 12 dias antes do inverno romano e meu último dia na cidade.
Pouco antes da hora do almoço, eu estava em um ponto no bairro de Trastevere, esperando o ônibus 115 que me levaria a um encontro muito especial.
Um encontro com uma garota.

Atrás de mim, no ponto de ônibus, o cartaz da Feira Piu Libri Piu Liberi, meu segundo destino do dia.
Ela nem sabia, provavelmente, mas eu a acompanhava por alguns anos. Quando criança, ouvia histórias tanto heróicas quanto difamadoras a respeito dela, que saiu do mesmo lugar que meus pais.
Uma garota que casou contra a vontade aos 15, aos 18 encontrou o amor da sua vida e largou casamento, família, cidade e país empenhada em lutar pelo próprio destino, que a fez protagonista de uma história de coragem, paixão, atrevimento, mas, talvez e principalmente, de desespero pelo ato de viver, de conhecer um universo maior do que o que se apresentava pra ela.
Esta escolha a levou entre tiros, fugas, batalhas, navegações, explosões, doença e mortes, de alguns filhos e inclusive a dela mesma.
É meu segundo encontro com ela aqui.
Da outra vez, vim carregado de entusiasmo e fascínio, mas mãos abanando. Desta vez não: na mochila tragos dois presentes especiais.

O ônibus 115 chega e começa a subir um pouco em ziguezague as alamedas íngremes do Monte Gianícolo, a oitava colina de Roma, e de onde melhor se pode ver a cidade toda. Na parte mais alta deste monte está imponente a estátua de Giuseppe Garibaldi. Durante o cerco sobre Roma em 1849, quando por poucas semanas Roma se tornou República e Garibaldi era um dos seus comandantes, foi deste monte que ele e seus camicie rosse defenderam a cidade, reforçados por uma Anita grávida de quatro meses que veio de Nice, furando sozinha o cerco inimigo, para se juntar ao seu marido e lutar.
Em retribuição, a cidade colocou Garibaldi eternamente sobre seu cavalo no alto desta montanha, olhando por Roma.

Fiz uma referência a este momento histórico – e eternizado em estátua- no livro, quando Garibaldi ainda jovem vê Roma pela primeira vez e fica apaixonado.
Poeticamente, o coloquei no mesmo lugar onde hoje fica sua estátua.

Garibaldi vê Roma do Janículo, do mesmo ponto onde está sua estátua hoje.
Mas a minha garota não está ali, e sim alguns metros adiante.
Desço do ônibus e vou caminhando devagar.
Para um sujeito um tanto cético, me surpreendo com o clima ritualístico e emocional em que estou envolvido.
De longe já a vejo, entre as árvores, simbolizada no belíssimo monumento de Mario Rutelli. Poucos carros passam, mas é domingo, pessoas caminham, tiram fotos e aproveitam o clima ameno.

Chego mais perto, aprecio o momento. Não é a primeira vez que estou aqui, mas nunca se sabe quando será a última.
Como de propósito, o movimento de passantes e turistas diminui, até que acaba.
Ficamos só nós dois, eu e ela.

Lá no alto, sobre o cavalo, ela com seu filho recém-nascido no colo, escapando de um cerco imperial em Mostardas- RS. Garibaldi estava fora, ela saiu ilesa varando as tropas inimigas semi-nua com o filho nos braços.
Dou a volta ao redor do monumento, passagens em alto-relevo contam períodos da vida dela, curando pessoas, guiando soldados, sendo carregada nos braços.

O cheiro de folhas no chão, o solo um pouco úmido, o barulho de Roma ao fundo, não posso negar que é um momento comovente.
Por instantes agradeço a oportunidade e a ousadia de fazer da sua vida um trabalho pessoal, de autor, do qual espero estar à altura.
Tiro da mochila os meus dois presentes. Meus dois livros sobre a primeira parte da vida dela, um em português, outro em italiano.

Deposito aos pés do monumento, bem em frente à placa que indica que ali também estão seus restos mortais.


Recolho minha mochila, a câmera fotográfica, e eis que surge um casal, olha intrigado e pega os dois livros. Não viram quem colocou, folheiam e devolvem ao lugar.

Minha tarefa está concluída, por enquanto.
Um panini em uma barraquinha aos pés do Garibaldi, pego o 115 em direção à Trastevere, tenho uma feira de livros pela frente e alguns autógrafos para desenhar.
Até mais, Anita.
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